Serviço de Alimentação e Hotelaria, uma relação histórica

Serviço de Alimentação e Hotelaria, uma relação histórica

Por André Victória da Silva

Acho que posso dizer que minha relação com a hotelaria começou na infância, em função das empresas do meu pai. Ele era daqueles portugueses com grande espírito empreendedor (que eu certamente herdei). Ao longo da vida, teve vários negócios, especialmente no segmento de alimentação, tipo lanchonete e restaurante. Cresci nesse contexto, cercado por cozinheiros, garçons e outros profissionais da área.

Quando chegou minha vez de cursar faculdade, dada a minha experiência trabalhando nos negócios da família, a escolha pela hotelaria veio naturalmente. E quando me formei e entrei no mercado de trabalho, minha área inicial de atuação, por motivos óbvios, foi A&B (Alimentos e Bebidas).

Fiquei quase dois anos na cozinha do Hotel Quatro Rodas, em Olinda, como parte do plano de trainee gerencial no qual me engajei. Pensei até em tentar a carreira de Chef de Cozinha, mas como já tinha me preparado para ser um gestor hoteleiro decidi manter meu plano original. E logo me tornei Coordenador de Eventos, depois Assistente de A&B e, na sequência, Gerente de A&B. A Gerência Geral só veio bem depois.

Na hotelaria há os Gerentes Gerais que fizeram carreira através da área de Hospedagem (o mais comum), alguns pelo Comercial, outros pelo Financeiro e até aqueles que vieram da Manutenção, mas os GG’s mais completos e melhores (provocação) são os que construíram sua carreira, como se costuma dizer, “pelo A&B”. E eu posso dizer que sou um deles. Tenho orgulho disso. Nos tornamos raros nos últimos anos, mas agora parece que isso está mudando.

Vale destacar que a chamada hotelaria moderna, essa em que os hotéis são completos e se tornaram uma espécie de templo do entretenimento e palco dos grandes acontecimentos sociais, nasceu da “cabeça” de um Restauranteur chamado César Ritz, considerado o “Pai da Hotelaria Moderna”. Fato é que ele foi Garçon, depois Maître e rodou muitos restaurantes até se tornar um hoteleiro de fato. Sua visão de hotel só foi possível porque ele deu destaque à gastronomia na composição da chamada oferta hoteleira completa. Quando se estuda a biografia de César Ritz fica evidente que o seu olhar e o seu sucesso na hotelaria derivaram da perspectiva da relação que ele tinha com a alta gastronomia e não o inverso.

Aliás, antes disso tudo, nos primórdios da atividade, foram as Tabernas que supriram as necessidades de abrigo dos viajantes.

Enfim, no contexto da hotelaria, acho difícil separar o serviço de alimentação da prática da hospitalidade.

Mas eu diria que essa relação viveu uma forte crise a partir dos anos setenta e oitenta, na Europa, e com um atraso de quase duas décadas, a partir do final dos anos noventa, aqui no Brasil.

Acho interessante especular sobre os motivos dessa crise, porque nos ajuda a entender o que acredito estar acontecendo nesses últimos anos, ou seja, esse renascimento da gastronomia dentro da hotelaria em geral.

Então vamos lá!

Eu diria que a crise se deveu inicialmente ao fato de que a única gastronomia praticada na hotelaria, desde a época de César Ritz, foi a chamada alta gastronomia, aquela caracterizada pelo luxo das instalações, utilização de produtos sofisticados e raros, e cardápios (talvez fosse mais adequado falar menus) compostos por preparações só possíveis a profissionais altamente especializados e caros. Aliás, não por acaso, durante décadas, praticamente todos os grandes Chefs “nasceram” ou passaram boa parte da sua vida profissional atuando em grandes hotéis. Um bom exemplo disso foi o Chef e parceiro de negócios de César Ritz, nada menos do que o grande Auguste Escoffier.

Mas fato é que esse modelo de negócio de alimentação não é para qualquer hotel, pois além de muito caro é difícil de se viabilizar. Alguns poucos hotéis conseguem ser originais e bem-sucedidos, enquanto a esmagadora maioria acaba se limitando a executar cópias malfeitas e “baratas” do modelo.

Às vezes isso se dá por falta de conhecimento, pois nem toda empresa tem acesso à boa informação, ou capacidade de pagar pelos profissionais adequados (o que imagino ser o mais comum); mas há também a decisão deliberada de alguns, de “adaptar” o modelo fazendo releituras depreciativas, dadas suas limitações de recursos ou impossibilidade de viabilizar o modelo correto em seu mercado de atuação.

Nesse sentido, era natural que os restaurantes e bares dos hotéis em geral fossem se tornando, com o passar dos tempos, espaços descaracterizados, tristes, sem alma e, principalmente, sem clientes.

As ofertas de A&B da hotelaria até que esboçaram uma reação quando do surgimento da hotelaria midscale padronizada, com a Holliday Inn, a Novotel e outros, no final da década de 60. Há que se destacar que a proposta de alimentação que essas redes desenvolveram foi muito interessante: cardápios de estrutura mais flexível, com preparações menos sofisticadas, que muito lembravam a ótima comida de Bistrô. Surgiram nessa época os chamados Menus Infantis, numa prova clara de que o foco tinha deixado de ser o produto, ou seja, a alta gastronomia, e migrado para o melhor atendimento das expectativas dos clientes e seus diferentes perfis.  Todavia, infelizmente a solução de ambientação dos restaurantes deixava muito a desejar, o que na minha avaliação foi o motivo do seu sucesso apenas parcial e temporário. A propósito, ainda sobre essa questão, arrisco-me a dizer que foi por esse motivo que o serviço de alimentação servida nos apartamentos, o Room Service, se popularizou. E sobre o Room Service, há que se destacar o impacto dos laptops e do Wi-Fi, já nos anos 90, que fizeram com que os viajantes a trabalho alongassem suas jornadas no conforto dos apartamentos, tornando a refeição servida pelo Room Service na melhor opção. O serviço de quarto, como também é chamado, naturalmente passou a oferecer cardápios cada vez mais completos e sofisticados, mas infelizmente muitas vezes sem a devida adequação, pois a alimentação servida nesse formato demanda cuidados especiais. Afinal, não é toda preparação que se presta a ser servida nessa modalidade.

Na segunda metade dos anos oitenta (pelo menos aqui no Brasil), quando surgiram os Condo-Hotéis, o que se viu foi um grande movimento de terceirização dos serviços de alimentação para empreendedores individuais ou empresas de marcas estabelecidas no segmento de restaurantes. Muitos hotéis bem localizados, do ponto de vista do negócio dos restaurantes terceirizados, até tiraram proveito desse movimento, porque foram capazes de captar parceiros que tinham ou desenvolveram ótima reputação, e isso lhes agregou valor em termos de imagem, se tornando, em alguns casos, elemento de preferência dos seus clientes. Por outro lado, o que se descobriu é que esses restaurantes eram negócios de cultura e filosofia de trabalho completamente distintas e apartadas da filosofia de serviços dos hotéis onde estavam localizados. Quem administrou esse tipo de solução sabe bem como era, e é (pois ainda existem muitos hotéis que terceirizam os seus serviços de alimentação) difícil resolver esse “desalinhamento”: os terceirizados têm pouca experiência e baixo interesse no serviço do café da manhã, e enormes dificuldades para encontrar a melhor fórmula de atendimento dos eventos, só para citar algumas.

Alguns anos mais tarde, com o surgimento e ascensão da chamada Hotelaria Econômica (e por isso na década de setenta na Europa e só na década de noventa aqui no Brasil) a derrocada das estruturas de A&B da hotelaria tradicional ficou iminente. Isso porque o modelo de serviços desses hotéis é o mais enxuto possível e foca quase que exclusivamente a hospedagem, tornando a oferta de A&B facultativa. Para se alimentar, os clientes desses hotéis passaram a contar com serviços de delivery, vending machines ou com as opções de estabelecimentos eventualmente existentes na vizinhança dos hotéis.

Fato é que quando os hotéis econômicos explodiram, as estruturas de A&B da hotelaria em geral já estavam muito desgastadas e gozavam de pouco prestígio e interesse por parte da Alta Gestão das redes hoteleiras (falo aqui de forma generalizada, é claro), que já haviam inclusive terceirizado a solução do problema, conforme já dito no caso dos Condo-Hotéis. Nessa época era muito comum se escutar: “O A&B só traz problemas e dá prejuízo”.

Anos mais tarde, para tornar esse cenário ainda mais difícil, vale lembrar que, no Brasi, o café da manhã foi retirado das diárias, ou seja, passou a não ser mais “garantido”, outro grande golpe para o A&B.

Enfim, todos esses aspectos e acontecimentos não poderiam ter outro resultado que não gerar uma espécie de cisão na relação Serviços de Alimentação e Hotelaria, que passaram a ser encarados como negócios distintos.

O A&B de muitos hotéis passou a ser visto como uma espécie de mal necessário.

Foi um período bem difícil para os profissionais da área.

O que ocorreu depois disso?

Bem, o que acontece é que essas atividades são tão conectadas entre si que era uma questão de tempo para o cenário mudar e a “relação” dar um passo atrás.

Um dos aspectos que logo se destacou foi o impacto nos resultados dos negócios, pois nos hotéis, digamos assim, com uma oferta básica de café da manhã, bar e restaurante (jantar), as receitas de A&B representam de 30 a 40% do total das receitas do hotel (chegando a 50% ou mais em hotéis com bons fluxos de eventos). Claro que a margem de contribuição de A&B é bem menor do que a das vendas de hospedagem (Diárias), mas ainda assim está longe de ser algo desprezável.

Outro aspecto extremamente relevante foi o impacto dessa mudança para os clientes, que por sua vez sentiram falta de uma solução mais acessível e de melhor qualidade para o atendimento das suas necessidades de alimentação, uma vez que, sem dúvida, esse é um componente importante da sua experiência como hóspede. Ficou claro o quanto a oferta de A&B pode atrair e fidelizar clientes para um hotel.

E mais recentemente tivemos ainda o movimento de resgate da importância vital da alimentação, em meio ao processo de reclusão das pessoas durante o período da pandemia. Todos percebemos, dentre outros aspectos, a importância da comensalidade em nossas vidas.

Foram essas as questões que fundamentalmente provocaram os hoteleiros a buscar alternativas. E foi então que se desenvolveram as ofertas atuais, mais interessantes e isentas dos vícios do passado.

A primeira onda nesse sentido foi a criação dos pontos de venda temáticos, que começaram a aparecer principalmente nos hotéis econômicos e do midscale. Alguns foram produtos de autoria das próprias redes hoteleiras, outros, desenvolvidos ou incorporados das empresas parceiras nos hotéis que optaram por terceirizar seus serviços de alimentação.

Esse tipo de oferta foca o entretenimento no sentido mais amplo, para além do serviço de alimentação, priorizando a criação de ambientes imersivos, que contribuem para uma experiência mais dinâmica e envolvente dos clientes, o que corrige o problema antigo da falta de personalidade e de “vida” das ofertas tradicionais. Além disso, esse tipo de negócio também está muito alinhado com a tendência atual da “vida virtualizada”, onde os clientes gostam de compartilhar fotos e vídeos dos locais onde estão. E por último, vale destacar que a depender da escolha do tema e criatividade na sua execução, esses bares e restaurantes temáticos são negócios que não necessariamente exigem grandes investimentos iniciais e não tem custos mais elevados de operação, pelo contrário, se bem idealizados, podem até representar redução de custos operacionais.

A grande dificuldade em relação às ofertas temáticas, por sua vez, é a escolha do tema, ou seja, saber identificar e explorar aquele com maior poder de atração e satisfação dos clientes existentes e potenciais, assim como, obviamente, a sua capacidade de maior geração de resultados financeiros.

Por último, vale destacar a importância e o impacto das tendências da alimentação atual: o renascimento do Vegetarianismo, o surgimento do Veganismo, a Comfort food (comida afetiva), a sustentabilidade, as dietas nutritivas (glúten free, zero lactose, lowcarb, baixa em calorias etc.) e a grande quantidade de pessoas que buscam “apenas” uma alimentação mais saudável e equilibrada. Todas essas tendências têm motivado os hotéis a criarem ofertas diferentes, inovadoras e especializadas, mais alinhadas ao momento atual dos clientes, resolvendo-lhes assim um problema complicado, que é a dificuldade de conseguir se alimentar fora de casa seguindo suas preferências e dietas, e com isso constituindo um novo fator de captação e fidelização de clientes.

Aliás, em relação a todas essas novas tendências do serviço de alimentação na hotelaria, vale destacar a importância que teve a popularização da profissão de Cozinheiro (ou talvez fosse melhor dizer, de Chef), dada a grande ampliação da oferta de cursos de formação nessa área. Com a maior disponibilidade de profissionais qualificados no mercado, sua contratação se tornou mais acessível. Além disso, as novas gerações de Chefs já não são uma unanimidade em relação ao interesse pela alta gastronomia. Muitos preferem desenvolver trabalhos com linhas gastronômicas alternativas, como é o caso dessas novas propostas de oferta.

Os restaurantes gastronômicos renomados dos grandes hotéis continuam e continuarão sempre existindo, mas hoje, de maneira geral (e essa foi a evolução), os hotéis que não têm mercado para esse tipo de oferta, se libertaram do modelo e aprenderam a desenvolver suas próprias alternativas, dentro de um arsenal de opções mais alinhadas com suas possibilidades e com os anseios dos seus clientes.

Fico feliz de ver o A&B voltar a ganhar espaço e protagonismo na Hotelaria.

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